O neonazismo

Antonio Carlos Coelho *
Chocam ovos de víbora e tecem teias de aranha. Aquele que lhes come os ovos morre; esmagados, sai deles uma serpente. (Isaías 59:5)
A serpente nazista havia passado. Com a cabeça esmagada pelas forças aliadas e pelo fracasso da Alemanha na II Guerra Mundial, a serpente, símbolo bíblico do mal, estava morta, mas seus ovos permaneceram escondidos em algum lugar, prontos para eclodirem em algum momento da história.
Os ovos da serpente eclodiram. Geram filhos. Espalhados pelo mundo globalizado estão os filhotes do perverso. Jovens, embriagados da ideologia pregada por Hitler, semeiam a intolerância racial, religiosa, étnica, ideológica sob o pretexto de uma sociedade pura.
Eram os anos setenta. O mundo tomava um rumo diferente daquele criado no pós-guerra. Países que antes faziam parte de uma periferia da Europa despontaram no cenário econômico. Tornaram-se produtores e fornecedores dos países industrializados e de economia forte. Muitas indústrias diminuíram a produção desmantelando sua base industrial.  A Europa, principalmente a Inglaterra, se viu invadida por produtos de qualidade duvidosa oriundos da Ásia Oriental. O desemprego cresceu e evidenciava-se o fim da idéia do “pleno emprego”.
Por outro lado, a estagnação do aumento demográfico na Europa abriu espaço para entrada de imigrantes de países mais pobres do continente. Isso combinou com a necessidade de um tipo de mão de obra mais barata. “A idéia de “invasão dos bárbaros” foi se arraigando no espírito dos europeus. Dessa forma, a Europa apareceu como velho Império Romano em declínio e os bárbaros, aqueles de pele morena que vão “invadir e conspurcar” os modos de vida que os ocidentais detinham”.[1]
A idéia de uma Europa invadida passou a ser difundida de entre pessoas esclarecidas. Certa vez, numa viagem de trem, conversava com um senhor, professor de uma universidade inglesa. Ele reclamava da qualidade dos serviços no seu país. Acusava seu governo de receber imigrantes não qualificados. Por trás da insatisfação com os serviços prestados pela mão de obra dos estrangeiros estava o inconformismo com a presença de um tipo de gente desqualificada que, aos poucos, invadia seu país.
A Europa Ocidental, apesar de ter se recuperado fantasticamente dos efeitos da II Guerra, guardou, como guarda ainda hoje, ressentimentos de invasões e perdas de pessoas naquele conflito. Somam-se a isso, saudosismos de regimes totalitários que permaneceram mesmo após a queda dos regimes fascistas na Itália e Alemanha. Tais sentimentos, ainda vivos, alimentam idéias de outros tempos, quando, para eles, havia valores nacionais mais definidos.
O fim da Guerra Fria, a queda do Muro de Berlin e a retomada do liberalismo econômico geraram incertezas em diferentes níveis na população do antigo continente. A integração de países do Leste Europeu à Comunidade Européia, de certa forma, comprometeu a segurança econômica e social de países como Alemanha, França, Itália. Há um medo do futuro. Os serviços de saúde tornaram-se deficientes, há dificuldade de empregos e fragilidade no seguro social.
As insatisfações atingem todos os níveis da sociedade. Se há aqueles, com vida estável que lamentam a significativa presença de imigrantes, há aqueles que, nas periferias das cidades, se sentem ameaçados pela presença dos estrangeiros que ocupam seus postos de empregos por baixos salários e competem nos serviços públicos de saúde, seguro social, educação. Assim se alimenta o xenofobismo e o racismo. Os estrangeiros passam a representar todo o mal da sociedade: a prostituição, o comércio de drogas, a criminalidade, a decadência dos costumes, a introdução de novos valores e crenças religiosas numa Europa tradicionalmente cristã.
Nesse ambiente surgem lideranças que traduzem os sentimentos nacionalistas, xenofóbicos e racistas. Aparecem partidos políticos que, aos poucos, ganham notoriedade entre eleitores de diferentes classes sociais. Temos exemplos na Áustria (Partido da Liberdade), Alemanha (NPD, entre outros), Itália (Liga Norte), França (Frente Nacional).
O xenofobismo e o racismo não são privilégios da Europa. Manifestam-se nos Estados Unidos e em outros países da América de forma muito semelhante e com raízes históricas profundas. Quanto aos Estados Unidos não é necessário falar das questões raciais e da clara apartheid que dominou até os anos 60, e que ainda se mantém no ideal e ações de grupos como Ku Klux Klan e nos mais recentes White Power, Stormfront e Skinhaed.
E no Brasil, como se manifestam esses grupos? O que pretendem? Como a ideologia nazista, aparentemente tão distante da realidade dos jovens brasileiros chega a influenciá-los a ponto de formarem grupos relativamente organizados e promoverem ações contra indivíduos que julgam inferiores por serem pertencentes a grupos rivais ou possuírem cor, religião, opções diferentes de vida?
Se falamos em partidos nacionalistas europeus com características nazifascistas, bem organizados, capazes de conquistar cadeiras num parlamento, os grupos neonazistas brasileiros estão muito longe disso, aliás, não possuem o mínimo de organização e comprometimento para obter o menor poder senão aquele que podem impor pela violência de seus atos.
Na realidade esses grupos, chamados de skinheads e nazi-skin, tem a consciência de suas limitações sociais e econômicas. Sabem que são vistos como “lixo” da sociedade e assumem tal condição, no entanto tiram proveito disso, comportando-se com violência, impondo o medo pela forma de vestimenta, pelo modo de encarar as pessoas em sua volta, pelas tatuagens agressivas, etc.
Os skinheads e nazi-skin (não sei se há alguma diferença entre eles, embora se apresentem como diferentes e, muitas vezes, rivais) buscam na ideologia nazista mais o que é aparente do que há no seu conteúdo: símbolos como a suástica, as insígnias das SS, trajes militares, coturnos, o que os dá uma aparência caricata, longe do real. E é o que mais causa impacto, pela aparência repugnante que insistem em manter, pois isso os identifica e amedronta a quem desejam agredir.
O ideal nacionalista não existe. A noção de nacionalidade não ultrapassa as fronteiras dos bairros de periferia ou de regiões de algumas cidades maiores onde podem atuar com maior facilidade. Na realidade, a defesa do nacionalismo, é a defesa do habitat.
Esses grupos são formados por jovens, na maioria dos casos. Comportam-se como tribos, buscando inimigos externos com intuito de fortalecer a coesão “tribal”. Assim, todos aqueles eleitos por eles como elementos perniciosos à sociedade, fracos, sujos, tornam-se seus alvos. São os negros, nordestinos, judeus, estrangeiros, homossexuais. E, eles, por sua vez, julgam-se os fortes, os limpos, o modelo ideal para a sociedade “purificada” que apregoam.
Como uma tribo, estabelecem certos padrões de comportamento que os identifica, bem como ritos de iniciação que provem a determinação e a capacidade de agredir seus inimigos. Assim, no rito de iniciação, um aspirante poderá mostrar-se em condições de pertencer a grupo cometendo um crime: homicídio, estupro ou outro ato de violência com uma pessoa.
Apesar das suas idéias e conhecimento das causas nacionalistas serem limitadas eles oferecem perigo à sociedade. O fato de possuírem uma ideologia, muitas vezes são diferenciados dos criminosos comuns. Em não raros os casos, são beneficiados nos processos judiciais.
Mas, há também, outra forma de grupos neonazistas que não se identificam com os rapazes da periferia, trajados como “guerreiros”, pronto a acabar com os inimigos da vizinhança, com negros, nordestinos, judeus, estrangeiros, homossexuais. Há os grupos formados por profissionais atuantes em suas especialidade e estudantes universitários.
Há pouco mais de um ano tivemos o conhecimento de um grupo formado por estudantes e empresários que se reuniu um Capina Grande do Sul para comemorar o aniversário de Hitler. Nessa ocasião um casal, integrante do grupo, foi executado a tiros a mando do líder, um empresário paulista. Descobriu-se, então, que havia – ou há – uma rede, que ultrapassa os limites do bairro, que atinge a outros estados brasileiros, organizada através da internet.
Esses não são os rapazes violentos dos bairros da periferia, são indivíduos com acesso às redes sociais, com capacidade de divulgar material proselitista, com poder de organização, com dinheiro, com armas, etc. Certamente esses neonazistas, não se chamam skinheads, não vestem roupas exóticas e não se dispõem a promover arruaças nas ruas. Vivem na sociedade, são educados, bem articulados, tem contato com estudantes universitários, com políticos e sabem o caminho para angariar fundos para suas organizações.
Embora a polidez aparente, capaz de iludir jovens e empresários de má índole, são mais perigosos que os “nazistas da vila”. Atuam no silêncio, na disseminação e fortalecimento de velhos preconceitos contra minorias étnicas, religiosas, raciais. Relacionam-se com congêneres internacionais, alimentam sites e fomentam a publicação de livros, músicas e material de propaganda nazista. Esses fazem parte do subterrâneo da perversidade e, que veem seus frutos no ódio racial e na intolerância espalhada na sociedade.
Pouco conhecemos desses grupos formados no seio da classe média, no entanto temos a certeza de que se beneficiam das facilidades de penetração social e do poder econômico, por isto, são mais perigosos.
Os jovens que foram assassinados na noite do aniversário de Hitler, numa estrada escura do município de Campina Grande do Sul eram universitários. O pai da jovem, Renata W. Ferreira, de 21 anos, disse estar surpreso por saber que sua filha estava envolvida com neonazistas. Acredito na sua surpresa ao saber com quem aquela moça de 21 anos, educada, preparada para cursar arquitetura numa boa universidade, estar ligada com aquele tipo de gente. Ele não a educou para isso.
Talvez aqui esteja a razão de jovens, como Renata, serem cooptados por neonazistas. Pais nunca acreditam que seus filhos possam ser atraídos para o mal, seja qual for o tipo. Educam para seguirem uma vida igual, ou melhor, da que eles tiveram, mas não contam com o imprevisto. Isto não faz parte da educação.
Como pais e educadores temos o dever de ensinar o bem, o moral, o ético, o valor do ser humano, independente de raça, religião, opção política ou sexual. Temos o dever da transmissão de valores. São estes que darão condição para que os nossos jovens filtrem o que é bom e o que mau.
O objetivo deste encontro não é outro senão o de oferecer subsídios a vocês, educadores e educadoras, sobre o nazismo e o seu filhote, o neonazismo. Quando tratamos de nazismo não apenas desejamos relatar fatos hediondos cometidos no passado e alertar que ainda há perversos espalhados pelo mundo. Queremos, também, destacar o valor de cada ser humano, como pessoa, como ser livre, capaz de fazer suas escolhas, capaz de participar da sociedade com dignidade e dela receber o respeito e o reconhecimento. E, principalmente, queremos destacar o valor da existência humana, valor que só se obtém na relação respeitosa entre pessoas.
Nota:
[1] Vízentini, Paulo Fagundes; O ressurgimento da extrema direita e do neonazismo: a dimensão histórica e internacional, em Neonazismo, Negacionismo e Extremismo Político; Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em www.derechos.org/nizkor/brazil/libros/neonazis/index.html
Antonio Carlos Coelho, professor de História de Israel, Ecumenismo e Judaísmo no Studium Theologicum de Curitiba, da Faculdade Evangélica do Paraná e da Faculdade Vicentina de Filosofia e Teologia. Assessor da Direção Geral da Faculdade Evangélica do Paraná, Diretor do Instituto Ciência e Fé, articulista do Jornal Visão Judaica e do Jornal Universidade – Ciência e Fé.